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terça-feira, 15 de julho de 2014

Não há Democracia no Brasil: dois exemplos do perigoso avanço do Estado sobre nossos direitos




Poderes constituídos resguardam repressão estatal contra liberdade de protestar 

Texto escrito por Ari Marcelo Solon, livre-docente, doutor e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP), instituição da qual é atualmente professor associado.


São Paulo, 30 de junho de 2014.


Como bem observado por Kelsen, a burguesia quando acuada não cria nada, apenas regride (moral, política e filosoficamente) e recorre a mecanismos nitidamente fascistas para salvaguarda de seus ideais/argumentos meramente políticos, autoritaristas e opressores. Vale dizer, utilizam-se do conceito genérico e abstrato de “ordem pública” como meio legitimador de regressão (aqui, entendida como modo de defesa primitivo, como salientado por Freud) à ditadura para nulificar a legalidade e importância dos manifestos populares.

No Estado de São Paulo, temos verificado que todas as instituições (Polícia, Ministério Público e Judiciário) – que deveriam primar pelo Estado Democrático de Direito - estão alinhadas para resguardar o aparelho repressivo do Estado em detrimento da liberdade de Manifestação. Ou seja, atos nitidamente autoritários, opressores e fascistas estão sendo velados sob a argumentação de que é necessário repudiar as manifestações “supostamente” ilegais (mas, em verdade, oprimem muito mais os atos legítimos e legais).

No entanto, diferente do que se faz crer, a luta atualmente vivenciada não tem caráter corporal, exclusivamente partidarista ou político, mas um caráter nitidamente ideológico e principiológico.

Dadas essas considerações iniciais, tenho me questionado cada vez mais: Onde estão os estudantes de direito, do ensino público (e gratuito), principalmente os alunos da FADUSP, para reestabelecer o princípio organizador da Constituição e sepultar as ideias fascistas utilizadas como arrimo para perpetrar prisões ilegais em face de pessoas inocentes? O que estes alunos, que teriam competência material (e, por que não dizer, obrigação moral, legal e filosófica) para criar novas ideologias, estão fazendo para expurgar as atitudes autoritaristas e ilegais?

Conforme nota de repúdio publicada no dia 27.06.2014, expus minha indignação quanto à prisão efetuada no último dia 23.06.2014 em desfavor do nosso colega de universidade, Fábio Hideki, trabalhador da USP e funcionário da saúde.

Após manifestação popular na região da Avenida Paulista, policiais civis infiltrados efetuaram a prisão em flagrante de duas pessoas, dentre elas a do nosso colega Fábio, quando se encontrava no metrô para voltar à casa. Após abordagem e revista efetuada pelos policiais, e, mesmo estes não encontrando nada em posse de Fábio, como podem atestar diversas testemunhas, incluindo o Padre Júlio Lancelloti, os policiais alegaram que ele estava portando artefato explosivo e levaram-no preso.

Na delegacia, foi lavrado Boletim de Ocorrência (BO) e auto de prisão em flagrante que descrevem genericamente que Fábio seria um dos supostos líderes de grupo de manifestantes, vez que supostamente teria consigo papéis manuscritos. Ainda, segundo o BO, ele teria praticado os delitos de incitação ao crime, formação de quadrilha ou bando, resistência e desobediência, estatuídos nos artigos 286, 288, 329 e 330 do Código Penal, respectivamente. Ainda, teve contra si imputada a prática de porte de substância explosiva disciplinada no artigo 16, Parágrafo Único, da Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento), que sequer foi identificada nos autos.

Após constatar de forma iniludível que as circunstâncias autorizativas da prisão em flagrante eram de legalidade extremamente duvidosa, vez que se verificou a imputação de tipos abertos nas condutas supostamente praticadas e que levaram o Fábio à prisão, a Defensoria do Estado de São Paulo impetrou ordem de Habeas Corpus em 24.06.2014.

O HC indigitado apontou a latente inconsistência das acusações trazidas nos autos de prisão em flagrante, bem como o total descabimento da prisão cautelar.

Ainda, demonstrou-se em síntese que: (i) nada obstante o artigo 310 do Código de Processo Penal preceitue que em até 24h (vinte e quatro horas) o juiz deverá relaxar prisão ilegal ou convertê-la em preventiva, se presentes os requisitos que a autorizam, o MM. Juízo a quo não proferiu qualquer decisão mesmo após passadas 48h (quarenta e oito horas) da prisão em flagrante; (ii) a desarrazoada demora no proferimento de decisão, uma vez que o nosso colega seguia preso desde o dia 23.06.2014, exclusivamente em razão da prisão em flagrante, que, sem decisão judicial, tornou-se ilegal por vício de formalidade; (iii) a necessidade de concessão de liberdade provisória, pois, além do vício de formalidade constante no auto de prisão em flagrante, estão ausentes os requisitos autorizativos da prisão preventiva, notadamente em razão de as acusações formalizadas em desfavor dos pacientes serem demasiadamente genéricas; (iv) o indiciado é réu primário e não ostenta antecedentes criminais; e (v) no presente caso a determinação de prisão cautelar seria desproporcional e desarrazoada, pois, ainda que fossem indiciados por todos os delitos imputados (o que é improvável por conta da insubsistência das descrições), não seriam constrangidos ao cumprimento de pena em regime fechado.

Ocorre que, posteriormente à impetração do HC, foi proferida decisão extemporânea de conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva sob o falido argumento de que a colocação dos indiciados em liberdade supostamente violaria a ordem pública, a despeito de reconhecer in caso a primariedade e bons antecedentes destes.

Em razão disso, a Defensoria Pública requereu o aditamento do HC impetrado para demonstrar a invasão de competência do r. juízo do DIPO ao externar suas opiniões pessoais sobre as manifestações e tomar como absoluto o quanto relatado no BO. De igual modo, apresentou-se o registro da imprensa nacional e internacional, havendo documentação no sentido de que as circunstâncias da prisão foram muito diversas das que foram relatadas no BO.

No entanto, apesar da demonstração inequívoca da presença dos requisitos autorizativos para a concessão da medida liminar pleiteada no HC impetrado, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora, o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo indeferiu o pedido liminar formulado. Na qualidade de professor de Direito da USP e, principalmente, de ser humano indignado com as frequentes injustiças, venho por meio da presente nota manifestar meu apoio à ordem de Habeas Corpus impetrada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Inicialmente, devemos rememorar que o princípio da presunção da inocência e o direito fundamental à liberdade são comandos normativos que traduzem a ideia de excepcionalidade das prisões e corroboram o enquadramento do Direito Penal como ultima ratio de aplicação.

E não é só, após a reforma promovida pela Lei n.º 12.403 de 2011, a excepcionalidade da prisão preventiva (cautelar lato sensu) restou ainda mais evidenciada ao possibilitar ao poder judiciário a adoção de medidas cautelares alternativas (cautelar lato sensu) à prisão.

Ademais, importante consignar que os delitos imputados ao nosso colega Fábio não levarão ao cabo a restrição da liberdade. Isso porque, ainda que seja condenado em todos os crimes ora imputados - o que se levanta apenas a título de discussão, pois carecem de subsistência as condutas ora imputadas -, não será constrangido a cumprir pena em regime fechado. Ou seja, não havendo prisão ao final, inexistem razões autorizativas (e lógicas) para manutenção da prisão cautelar.

Conforme devidamente esboçado no HC impetrado, todas as acusações imputadas são genéricas. No que diz respeito ao crime de incitação, não houve qualquer indicação e discriminação sobre qual seria o ato criminoso incitado pelo Fábio. De igual modo, o suposto cometimento do crime de desobediência sequer foi mencionado no BO e no auto de prisão, não havendo indicação sobre qual ato de ofício teria sido desobedecido. A imputação de crime de formação de quadrilha ou bando é ainda mais esdrúxula e surreal, especialmente porque, além de não terem sido identificados outros indivíduos que pudessem fazer parte da “quadrilha”, não se verificou a comprovação do liame voltado à prática de crimes de pelo menos 3 (três) pessoas. Por fim, quanto ao crime de posse de substância explosiva, necessário consignar que não há descrição sobre a dita substância explosiva, de modo que a mera menção de que o Fábio estava com um “artefato incendiário de fabricação rudimentar” não justifica a manutenção da prisão.

Deveras, carece de fundamentação o falido argumento de que a prisão cautelar do Fábio deva ser mantida como forma de “garantia da ordem pública”. Além da conduta ilibada e da inexistência de antecedentes criminais que maculem a imagem do nosso colega, não estão configurados os pressupostos autorizativos para a determinação de prisão cautelar.

Além do mais, o fundamento da “garantia à ordem pública” é um resquício do Código Rocco, de caráter nitidamente policialesco e totalmente desprovido de sentido. Em verdade, tanto o conceito de ordem púbica quanto o de ordem econômica, em razão da inexistência de sentido fundamentador, levam à simples antecipação ilegítima da pena.

Na verdade a decretação da prisão preventiva de Fábio, sob o falacioso argumento da “manutenção da ordem pública”, é só um exemplo daquilo que estamos vendo acontecer sob as nossas perplexas vistas: desde o histórico “junho de 2013”, cada vez mais têm surgido decisões judiciais “endurecendo” com as manifestações populares, supostamente justificadas pelos isolados atos de vandalismo que se deram em meio aos referidos protestos.

Em que pese alguns excessos realmente cometidos, parece-nos que essa atitude, que não esconde certo oportunismo e um impregnado ranço ditatorial, pode descambar para um perigoso avanço do Estado sobre direitos fundamentais dos cidadãos, sob os mais diversos aspectos.

Lembremos que protestos, passeatas e manifestações em geral estão abrangidos pelo chamado “direito de reunião”, tratado no art. 5º, inciso XVI, da CF e sua condição de norma de eficácia plena, que contém em si todos os requisitos para a produção de efeitos, não permite a limitação do seu exercício, salvo naquilo já efetuado pela própria Constituição: que a reunião seja sem armas e que se dê prévio aviso à autoridade.

Assim, não nos parece legítimo esse “endurecimento” oportunista por parte dos poderes constituídos, sob pena de criarmos um despropositado e antidemocrático sistema repressor, digno de países totalitaristas.

As manifestações que se espalham pelo país nada mais são do que um sintoma de um momento crítico, de ruptura, que testemunhamos. Os pequenos núcleos patológicos que sugiram em meio a manifestações absolutamente legítimas não autorizam soluções autoritárias.

É por essa razão que repudiamos qualquer atitude repressora e antidemocrática em face das manifestações populares, assim como repudiamos veementemente a ilegítima prisão de Fábio Hideki, funcionário da Universidade de São Paulo, atualmente mantido preso sob acusações absolutamente despropositadas, clamando ao Judiciário que corrija, com a prontidão necessária, a escabrosa injustiça que vem sendo efetuada nesse caso concreto.


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PM prendeu arbitrariamente, filmou participantes e provocou o tempo todo


Texto escrito por Pablo Ortellado, professor e pesquisador da USP.


São Paulo, 03 de julho de 2014.


Participei hoje a noite do debate público pela liberação dos presos políticos que aconteceu na Praça Roosevelt. O debate não era uma manifestação — havia uma mesa e oradores simplesmente falariam para um grupo cerca de mil pessoas sentadas no chão. Apesar de ser apenas um debate, no meio da praça, a Polícia Militar enviou centenas de policiais do Choque e cavalaria, prendeu arbitrariamente e provocou o tempo todo os presentes. A sensação de todos nós é que a comparação com a ditadura não é mais metafórica. Simplesmente a liberdade de reunião e a liberdade de manifestação estão suspensas. Também como nos anos de chumbo, quem está dentro da ordem, apenas acompanhando e torcendo pelos jogos, nem percebe as graves violações pelas quais o país está passando.

Fui convidado para fazer uma breve fala pelos organizadores do ato-debate. Chequei com minha companheira Beatriz Seigner e logo encontrei amigos e conhecidos como o escritor Ricardo Lisias, o padre Julio Lancelotti, os professores da Unifesp Edson Telles e Esther Solano, além de muitos outros. Assim que cheguei, o advogado Daniel Biral, do grupo de advogados ativistas, me cumprimentou e relatou que o coronel que comandava a operação o tinha abordado e perguntado em tom ameaçador quem ele estava representando. Ao que respondeu, “estou representando a democracia”.

Enquanto as pessoas aguardavam o começo do debate, dois policiais com capacetes e filmadoras passavam pelas pessoas e filmavam muito de perto o rosto de cada uma, em tom provocativo – sem qualquer motivo. Certamente esperavam alguma reação indignada para que pudessem revidar com bombas e agressões. No entanto, as pessoas apenas gritaram palavras de ordem contra a ditadura.

Quatro policiais da Choque fizeram então um cordão de proteção em torno deles e durante todo o debate filmaram o rosto de todos os oradores a menos de três metros de distância da mesa. Assim que as primeiras pessoas começaram a discursar, as prisões começaram a ocorrer. O advogado Daniel Biral, que já havia sido ameaçado pelo coronel, foi preso após protestar contra a falta de identificação dos policiais. Aliás, ele não foi simplesmente preso, foi também agredido e com tanta brutalidade que ficou desacordado na viatura. Com ele, foi também presa a advogada Silvia Dascal.

Os organizadores conseguiram acalmar a indignação dos presentes e retomar os discursos. Menos de dez minutos depois, policiais revistaram de maneira completamente desnecessária e gratuita um rapaz negro que andava pela rua, bem ao lado do debate, numa atitude novamente provocativa. A imprensa foi toda para lá, o público pediu pela soltura do rapaz e a PM jogou bombas, atirou balas de borracha e gás lacrimogêneo e terminou prendendo outras duas pessoas.

Novamente os organizadores conseguiram acalmar os ânimos e retomar o debate. A Tropa de Choque fechou todos os acessos da praça e ficou por mais de uma hora em formação, pronta para atacar. A presença policial muito numerosa e ostensiva era apenas para intimidar e tentar uma provocação para um ataque massivo, que seria um verdadeiro massacre.

Amigos e amigas que ainda não tinham participado das manifestações dos últimos dias estavam chocados. Todos só falavam da volta da ditadura.