Beto conta que se vê como um rato. A sociedade finge que ele não existe. Torce para não encontrá-lo e, quando encontra, faz cara de nojo. Beto não se sente o último da fila. Morador de rua, ele nem sequer se enxerga na fila.
Tratado como praga urbana, Beto resignou-se em ser ignorado. O surreal é, hoje, ele pensar que era feliz e não sabia. A chegada do período de Olimpíada deu início à operação "Caça-Tralha" no Rio de Janeiro. Um caminhão de lixo acompanha funcionários da prefeitura, e os moradores de rua contam que são acordados com os cutucões do bico de uma bota. O pronome de tratamento para ocasião é "vagabundo".
A "Caça-Tralha" fez aqueles que dormem nas praças e calçadas da cidade sentirem saudade do tempo em que eram invisíveis. Agora são sumariamente enxotados se esticarem o papelão em bairros como Copacabana, Ipanema, Arpoador ou outros cartões postais da cidade olímpica. Por essa lógica, a de vender uma imagem, a zona de exclusão é imensa - o que não falta no Rio são lugares bonitos.
Os moradores de rua se consideram sujeira varrida para baixo do tapete. Em tempos olímpicos, o derradeiro lugar que eles consideram seguro para dormir no centro do Rio é sob a marquise do prédio da Defensoria Pública do Estado, único órgão que o grupo vê como comprometido em protegê-los de operações higienistas.
Toda noite são cerca de 40 pessoas que buscam refúgio no local. Como uma ironia divina, os chefes de Estado presentes na cerimônia de abertura do Rio-2016 foram recebidos como VIPs no Maracanã. Enquanto isso, debaixo da marquise, o grupo se enrolava em, digamos, cobertores.
Tratado como praga urbana, Beto resignou-se em ser ignorado. O surreal é, hoje, ele pensar que era feliz e não sabia. A chegada do período de Olimpíada deu início à operação "Caça-Tralha" no Rio de Janeiro. Um caminhão de lixo acompanha funcionários da prefeitura, e os moradores de rua contam que são acordados com os cutucões do bico de uma bota. O pronome de tratamento para ocasião é "vagabundo".
A "Caça-Tralha" fez aqueles que dormem nas praças e calçadas da cidade sentirem saudade do tempo em que eram invisíveis. Agora são sumariamente enxotados se esticarem o papelão em bairros como Copacabana, Ipanema, Arpoador ou outros cartões postais da cidade olímpica. Por essa lógica, a de vender uma imagem, a zona de exclusão é imensa - o que não falta no Rio são lugares bonitos.
Os moradores de rua se consideram sujeira varrida para baixo do tapete. Em tempos olímpicos, o derradeiro lugar que eles consideram seguro para dormir no centro do Rio é sob a marquise do prédio da Defensoria Pública do Estado, único órgão que o grupo vê como comprometido em protegê-los de operações higienistas.
Toda noite são cerca de 40 pessoas que buscam refúgio no local. Como uma ironia divina, os chefes de Estado presentes na cerimônia de abertura do Rio-2016 foram recebidos como VIPs no Maracanã. Enquanto isso, debaixo da marquise, o grupo se enrolava em, digamos, cobertores.
Descaso estatal
A coleção de humilhações cresce mensalmente. Juselia do Nascimento, 30, diz que é seguida por seguranças toda vez que entra num supermercado. Franklin Alves, 33, afirma ter visto um cadeirante com dificuldades de atravessar uma avenida recusar ajuda porque a oferta partiu de um morador de rua.
O poder público repete esse tratamento. O ação social que mais deu oportunidades a essas pessoas não é estatal, mas de uma ONG. O projeto Uma Só Voz montou um coral e permitiu aos moradores de rua cantarem em espaços nobres do Rio de Janeiro, como o Museu de Arte Moderna e o Museu do Amanhã.
Então a iniciativa privada se mobilizou pelo projeto? Não exatamente. Talvez o empresariado tenha até ajudado, mas com certeza não foi o brasileiro. A ideia e o financiamento vêm de fora. A grana tem origem na Inglaterra. O Uma Só Voz é uma continuação do trabalho feito com os moradores de rua de Londres antes de a cidade receber a Olimpíada em 2012.
No poder público fluminense, só houve alguma ação no ano olímpico. As defensorias do Estado e da União fizeram uma audiência pública em 13 de maio. Para a maioria, tais ocasiões são uma formalidade inútil. Mas, para quem nunca havia sido ouvido, foi uma catarse. Finalmente alguém para escutar os nossos problemas, pensaram os moradores de rua do centro do Rio.
A segunda audiência pública ocorreu na última quarta-feira. O número de instituições que faltaram reflete o tratamento que os governos insistem em dar a essas pessoas. Na lista dos que não enviaram representantes, estão a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Ministério Público, prefeitura do Rio e governo do Estado do Rio.
A coleção de humilhações cresce mensalmente. Juselia do Nascimento, 30, diz que é seguida por seguranças toda vez que entra num supermercado. Franklin Alves, 33, afirma ter visto um cadeirante com dificuldades de atravessar uma avenida recusar ajuda porque a oferta partiu de um morador de rua.
O poder público repete esse tratamento. O ação social que mais deu oportunidades a essas pessoas não é estatal, mas de uma ONG. O projeto Uma Só Voz montou um coral e permitiu aos moradores de rua cantarem em espaços nobres do Rio de Janeiro, como o Museu de Arte Moderna e o Museu do Amanhã.
Então a iniciativa privada se mobilizou pelo projeto? Não exatamente. Talvez o empresariado tenha até ajudado, mas com certeza não foi o brasileiro. A ideia e o financiamento vêm de fora. A grana tem origem na Inglaterra. O Uma Só Voz é uma continuação do trabalho feito com os moradores de rua de Londres antes de a cidade receber a Olimpíada em 2012.
No poder público fluminense, só houve alguma ação no ano olímpico. As defensorias do Estado e da União fizeram uma audiência pública em 13 de maio. Para a maioria, tais ocasiões são uma formalidade inútil. Mas, para quem nunca havia sido ouvido, foi uma catarse. Finalmente alguém para escutar os nossos problemas, pensaram os moradores de rua do centro do Rio.
A segunda audiência pública ocorreu na última quarta-feira. O número de instituições que faltaram reflete o tratamento que os governos insistem em dar a essas pessoas. Na lista dos que não enviaram representantes, estão a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Ministério Público, prefeitura do Rio e governo do Estado do Rio.
Nem a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, pastas da área social, compareceram. O próprio envolvimento das defensorias públicas é recente. Começou neste ano, o ano da Olimpíada.
"Antes tarde do que nunca. Tomaram vergonha na cara e estão indo para rua, saindo ao ar-condicionado", afirma a moradora de rua Erica Augusto, 36.
"Antes tarde do que nunca. Tomaram vergonha na cara e estão indo para rua, saindo ao ar-condicionado", afirma a moradora de rua Erica Augusto, 36.
Violações disparam
Ao ignorarem a audiência pública, os faltosos não viram sacos de lixo de 200 litros e mochilas ao lado das cadeiras dos presentes. Neles estão todos os pertences que um morador de rua tem na vida. Um pulo na lanchonete do prédio é reveladora. A atendente conta que não vendeu uma bala sequer aos moradores de rua – ninguém podia pagar.
No banheiro, os moradores de rua comemoravam ter água corrente e sabão para lavar o rosto e as mãos. Eles são expulsos dos postos de gasolina se forem flagrados junto a uma torneira. O ato final da audiência pública foi um banquete de cachorro quente com tubaína. O grupo comeu com pressa, quase com desespero. Reflexo de uma existência com fome.
Eles desceram o elevador cheios de alegria. Na última sexta-feira, noite da abertura da Olimpíada, estavam de volta ao local. Mas do lado de fora. Embaixo dos cobertores não havia mais felicidade. Essas pessoas dizem que a hora de dormir é a pior porque é quando os fantasmas aparecem. O mais aterrorizante deles é a solidão.
Cidinha é um exemplo. A mulher de 57 anos e cabelos brancos bem finos parece uma youtuber. Conta histórias interpretando trejeitos e tom de voz. Faz uma brincadeira atrás da outra. Quando o pedido de uma moeda é acompanhado de um 'não tenho', emenda que "nota de cem também serve" e dá risada. Pura carapaça.
Ela clama por atenção. Tem saudades das filhas, mas a vergonha é maior. O ímpeto com o qual vira a cachaça de outro morador de rua indica qual tem sido a principal companhia dela nos três anos que está longe de casa.
Trovão, 55, se nega a dizer o nome. Conta apenas que na rua tem muita gente com problemas mentais e/ou envolvidas com drogas. Mas pensa que isso não é motivo para serem esculachados. No alto de seus 68 anos, Gilberto Botti lamenta conviver com este ambiente. “Sempre pedi a Deus quando era mais novo que não chegasse ao ponto que tô. Um ponto caído”, afirma.
Gilberto confessa que a bebida e a cocaína destruíram sua vida. Assume que é dependente químico. Viciado, como ele diz. Conta que sua aposentadoria escorre para mão de traficantes e donos de botecos sujos. Mas estar na rua desde os 16 anos não eliminou o senso de realidade. A autoimagem é desoladora.
Ao ignorarem a audiência pública, os faltosos não viram sacos de lixo de 200 litros e mochilas ao lado das cadeiras dos presentes. Neles estão todos os pertences que um morador de rua tem na vida. Um pulo na lanchonete do prédio é reveladora. A atendente conta que não vendeu uma bala sequer aos moradores de rua – ninguém podia pagar.
No banheiro, os moradores de rua comemoravam ter água corrente e sabão para lavar o rosto e as mãos. Eles são expulsos dos postos de gasolina se forem flagrados junto a uma torneira. O ato final da audiência pública foi um banquete de cachorro quente com tubaína. O grupo comeu com pressa, quase com desespero. Reflexo de uma existência com fome.
Eles desceram o elevador cheios de alegria. Na última sexta-feira, noite da abertura da Olimpíada, estavam de volta ao local. Mas do lado de fora. Embaixo dos cobertores não havia mais felicidade. Essas pessoas dizem que a hora de dormir é a pior porque é quando os fantasmas aparecem. O mais aterrorizante deles é a solidão.
Cidinha é um exemplo. A mulher de 57 anos e cabelos brancos bem finos parece uma youtuber. Conta histórias interpretando trejeitos e tom de voz. Faz uma brincadeira atrás da outra. Quando o pedido de uma moeda é acompanhado de um 'não tenho', emenda que "nota de cem também serve" e dá risada. Pura carapaça.
Ela clama por atenção. Tem saudades das filhas, mas a vergonha é maior. O ímpeto com o qual vira a cachaça de outro morador de rua indica qual tem sido a principal companhia dela nos três anos que está longe de casa.
Trovão, 55, se nega a dizer o nome. Conta apenas que na rua tem muita gente com problemas mentais e/ou envolvidas com drogas. Mas pensa que isso não é motivo para serem esculachados. No alto de seus 68 anos, Gilberto Botti lamenta conviver com este ambiente. “Sempre pedi a Deus quando era mais novo que não chegasse ao ponto que tô. Um ponto caído”, afirma.
Gilberto confessa que a bebida e a cocaína destruíram sua vida. Assume que é dependente químico. Viciado, como ele diz. Conta que sua aposentadoria escorre para mão de traficantes e donos de botecos sujos. Mas estar na rua desde os 16 anos não eliminou o senso de realidade. A autoimagem é desoladora.
“[A gente] Se sente desprezível e desprezado”, fala Gilberto.
Sentir-se um rato não é um sentimento exclusivo de Beto. Ignorados pela sociedade e pelo poder público, muitos moradores de rua pensam em adotar uma solução extrema, que significa terminar embaixo de um ônibus ou pulando de uma ponte. Beto explica de onde vem esta angústia.
“Tem hora que te dá tristeza. Sente falta da família, sente falta de trabalho. Tudo de ruim a gente sente. No nível que me encontro, vou pensar o que da vida? Tem hora que penso em me suicidar. Penso em fazer uma besteira”, confessa.
Beto completa dizendo que ninguém sentiria falta dele. A honestidade estarrecedora prova que, mesmo maltratado, ele não perdeu sua humanidade. O ideal olímpico não deixa legado às pessoas que vivem nas sarjetas do Rio de Janeiro.
Os faltosos
O UOL Esporte procurou todas as instituições que não compareceram à audiência pública. A assessoria de imprensa do governo do Estado informou que moradores de rua são responsabilidade da prefeitura. Ministério Público, OAB, e a prefeitura não se manifestaram.
Sentir-se um rato não é um sentimento exclusivo de Beto. Ignorados pela sociedade e pelo poder público, muitos moradores de rua pensam em adotar uma solução extrema, que significa terminar embaixo de um ônibus ou pulando de uma ponte. Beto explica de onde vem esta angústia.
“Tem hora que te dá tristeza. Sente falta da família, sente falta de trabalho. Tudo de ruim a gente sente. No nível que me encontro, vou pensar o que da vida? Tem hora que penso em me suicidar. Penso em fazer uma besteira”, confessa.
Beto completa dizendo que ninguém sentiria falta dele. A honestidade estarrecedora prova que, mesmo maltratado, ele não perdeu sua humanidade. O ideal olímpico não deixa legado às pessoas que vivem nas sarjetas do Rio de Janeiro.
Os faltosos
O UOL Esporte procurou todas as instituições que não compareceram à audiência pública. A assessoria de imprensa do governo do Estado informou que moradores de rua são responsabilidade da prefeitura. Ministério Público, OAB, e a prefeitura não se manifestaram.
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Vídeo da matéria: http://tv.uol/14w4l