Por Oswaldo Coggiola
O governo criou uma fonte de recursos públicos para os bancos privados
financiarem investimentos de médio e longo prazo, principalmente os destinados
a bancar os programas de concessões de rodovias, ferrovias, portos e
aeroportos. Os bancos privados deverão pagar ao governo pelo acesso aos
recursos uma correção baseada na TJLP (taxa de juros de longo prazo), hoje de
5% ao ano, muito abaixo da taxa “de mercado”. O formato da medida
“atende pedido dos bancos privados”, anunciou o governo. Na
prática, ele está acabando com a intermediação do BNDES. Os economistas
“neoliberais” celebram aos brados a conversão do governo ao
“credo (violento) do mercado”.
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No início do ano pré-eleitoral (na verdade, já eleitoral) de 2013,
todos os índices da economia brasileira apontam para a estagnação e o
recuo. À queda, já anunciada, do PIB, veio somar-se agora o recuo
industrial (o primeiro em uma década), o retrocesso do investimento por
cinco trimestres consecutivos, o aumento do desemprego, que já afetava o
setor industrial e agora se transmitiu para o setor comercial
(sinalizando o fim do boom do consumo que foi a marca econômica e
política do governo petista), o aumento da inflação (que teria superado
1% em dezembro passado, isto é, mais de 15% anual, se não mediasse a
queda parcial das tarifas de energia - que irá reduzir
em 28% o custo dos grandes consumidores
e em 16% o dos pequenos e médios consumidores - e o adiamento dos
reajustes de tarifa nos transportes), a queda do lucro bancário privado
(- 5,3%) e o aumento (30% em média) das provisões contra calotes do
setor financeiro, que lucrou R$ 27, 7 bilhões, com um total de... R$ 52
bilhões previstos para devedores duvidosos e inadimplentes. A Bolsa de
Valores de São Paulo anunciou no início de 2012 que 45 companhias fariam
ofertas públicas iniciais de cotização de ações (só três delas o
fizeram). Em suma, um cenário de crise e recessão. O “remédio” do
governo é a mesmice aumentada, ou mais e ainda mais do mesmo.
O setor de ponta da saúde pública brasileira, os hospitais
universitários, por exemplo, estão sendo “assediados”, mediante
“terrorismo social” (termos usados pelo procurador federal do Ministério
Público do Trabalho) para ceder sua gestão ao setor privado mediante a
Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares). O governo Dilma
afrouxou todas as condições para a privatização (leilão) de 7500
quilômetros de rodovias, em nove lotes, aumentando de 6% para 14,6% a
taxa de retorno garantido para as empresas participantes. Com esse
presentão para o grande capital, pretende-se manter o programa de
investimentos de R$ 250 bilhões em rodovias, ferrovias, portos e
aeroportos. Sem falar em que o governo está hipotecando todas as
reservas do pré-sal, como já foi feito pelo governo Lula, que entregou
uma grande parte do pré-sal para a empresa OGX (Eike Batista).
Com a renovação das concessões de geração, transmissão e distribuição
de energia, o governo pretende hipotecar o patrimônio público para
reduzir a tarifa média de energia. Uma vez vencidas as concessões, elas
deveriam ser integradas ao patrimônio público. A MP (decreto) 579 é uma
tentativa do governo para utilizar aproximadamente 22 mil megawatts de
usinas hidrelétricas e 80 mil quilômetros de vias de transmissão para
tentar fornecer essa energia só pelo custo de operação e manutenção e,
com isso, tentar reduzir a média tarifária, que sempre beneficiou os
maiores consumidores. O governo diminuiu a tarifa média, só que quem
mais consome energia no Brasil é o grande capital (industrial,
comercial, agrário, financeiro). Qualquer benefício linear beneficia só
os mais ricos e deixa de fora 2,5 milhões de pessoas que ainda não têm
acesso à energia. 1.500 consumidores consomem aproximadamente 28% de
toda a eletricidade brasileira, e eles compram energia a um preço
aviltado, porque pagam apenas 20% do custo da energia, de não menos de
cem reais o megawatt-hora (MWh). Esses consumidores pagam cerca de R$ 20
por MWh. E os apagões são cada vez mais frequentes, pois, sem recursos,
a manutenção é pífia.
O governo, além disso, criou uma fonte de recursos públicos para os
bancos privados financiarem investimentos de médio e longo prazo,
principalmente os destinados a bancar os programas de concessões de
rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. Os bancos privados deverão
pagar ao governo pelo acesso aos recursos uma correção baseada na TJLP
(taxa de juros de longo prazo), hoje de 5% ao ano, muito abaixo da taxa
“de mercado”. O formato da medida “atende pedido dos bancos privados”,
anunciou o governo. Na prática, ele está acabando com a intermediação do
BNDES. O banco público recebia dinheiro do Tesouro e o repassava a
bancos privados, cobrando uma taxa. Agora, os bancos terão acesso direto
aos recursos. A nova fonte de água benta vai se somar aos R$ 15 bilhões
de depósitos compulsórios que o BC já havia liberado para financiar
investimentos. As instituições financeiras privadas poderão formar
consórcios para ter acesso ao fundo de recursos públicos.
Os economistas “neoliberais” (tucanos ou não), escrachados durante
uma década, celebram por isso aos brados a conversão do governo ao
“credo (violento) do mercado”, na verdade o credo do subsídio público ao
grande capital. “O governo saiu de seu labirinto”, anunciou o inefável
economista tucano Mendonça de Barros, pois “passou a depender do capital
privado para superar as limitações ao crescimento” (capital privado
que, por sua vez, depende dos créditos públicos e do saque ao Estado
mediante a especulação com títulos públicos). O governo federal já
destinou dois terços dos recursos gastos em 2013 para juros e
amortizações da dívida: apenas nos primeiros 35 dias de 2013 já foram
gastos nada menos que R$ 145 bilhões com juros e amortizações da dívida,
valor equivalente ao dobro dos recursos previstos para educação em todo
o ano de 2013. Para 2013, estão previstos R$ 900 bilhões para a dívida
pública, 20% a mais do que os R$ 753 bilhões gastos com a dívida no ano
passado. Isto mostra que, apesar da propaganda oficial sobre a queda da
taxa de juros, a dívida pública continua no centro da crise nacional. A
parte do orçamento federal destinada para pagamento de juros e
amortizações da dívida cresceu de 36,7% para 45,05%.
No Código Florestal, a expectativa do “veta tudo Dilma” não se
concretizou, e o governo tem demonstrado que seu projeto não se
restringe a uma ou outra área. Trata-se de um projeto global em favor do
grande capital, adequando às formas de organização do Estado à crise.
Aí se encaixa o projeto de Código Nacional de Ciência Tecnologia e
Inovação, que teve a “contribuição” de fundações privadas de todo o
país, há décadas empenhadas na privatização no interior das instituições
públicas. Para pagar a dívida pública, houve nos dois últimos anos
cortes no orçamento de 50 e 55 bilhões de reais, que, somente entre os
anos 2010 e 2011, fizeram cair 16,2% o orçamento para ciência e
tecnologia. Agora, para “remediar”, não só será permitida a
transferência direta de recursos públicos para o setor privado, como se
ampliará a possibilidade de as instituições públicas – as universidades,
responsáveis por mais de 90% da produção científica do país –
compartilharem seus laboratórios, equipamentos, materiais e instalações
com empresas privadas, inclusive transnacionais. O Código permitirá
ainda o acesso à biodiversidade pelos monopólios privados. Será
permitido, sem autorização prévia, o acesso ao patrimônio genético e de
conhecimento tradicional para fins de pesquisa. E também a extração do
patrimônio para fins de produção e comercialização.
Uma política de entrega nacional total.
A crise econômica não tem ainda reflexos políticos decisivos. Lula,
finalmente, lançou a candidatura de Dilma Roussef à reeleição. As
sondagens provisórias a situam em torno de 55% das intenções de voto,
com pouco mais de 10% para o tucano Aécio Neves, e percentuais
semelhantes para a oportunista Marina Silva (que está leiloando sua
candidatura para alguma sigla ou coalizão; a ex-senadora e ministra foi
recebida com gritos de “Brasil, urgente, Marina presidente” ao entrar em
um teatro lotado na Vila Madalena) e para Eduardo Campos (PSB), até a
data, no entanto, integrante da base aliada do governo. Ou seja,
teríamos uma nova eleição plebiscitária, onde só estariam realmente em
disputa alguns governos estaduais, São Paulo em primeiríssimo lugar
(haveria cinco pré-candidaturas petistas, incluída a de Guido Mantega: a
eleição de SP seria mais importante que a nacional...). As especulações
eleitorais, a mais de um ano e meio de distância do pleito, vão com
sede demais ao pote.
E não só por causa do cenário econômico de crise, nacional e
internacional, mas também por causa da luta de classes, e da crise
política. Uma plenária para organizar a luta pela negociação e contração
coletiva no serviço público e em defesa do direito de greve no
funcionalismo reuniu a 19 de fevereiro diversas entidades dos servidores
públicos dos três entes federativos na Câmara dos Deputados. O evento
contou com a presença de cerca de 600 participantes, das mais diversas
categorias do serviço público. Teria sido melhor realizá-la num local
sindical, num centro da luta de classes, mas algo foi feito. Os
sindicatos portuários, vinculados à Força Sindical (que anunciou sua
ruptura com o governo) e à Federação Portuária (CUT), por sua vez,
anunciaram medidas de luta contra a privatização dos portos (que
implicará em milhares de demissões). É claro que essas burocracias
apenas ameaçam (para negociar alguma coisa), mas viram-se obrigados a
abrir uma fresta por onde pode ser proposta e agitada uma política
classista (não à privatização, garantia e estabilidade no emprego,
reajustes salariais).
A crise do mensalão ainda não acabou, e vai marcar as composições
eleitorais. Como disse candidamente Wladimir Pomar (ideólogo da
“esquerda” do PT), o STF “aceitou a tese do mensalão, sem qualquer
consistência objetiva,
pois, se houvesse, teria que ter julgado a maior parte da Câmara dos Deputados”.
Tal e qual. Genoíno e Zé Dirceu, para ele, “cometem um erro crasso ao
pretenderem estabelecer uma relação das ações de repúdio aos
procedimentos e às decisões do STF com o apoio e sustentação do governo
da presidente Dilma, e com a luta pelas reformas política e tributária. E
praticam um erro maior ainda ao pretenderem fazer com que o PT assuma,
neste momento, como sua tarefa mais importante, a luta pela anulação das
condenações. Esquecem que isto incluiria absolver também o escroque
[Marcos Valério] que praticou inúmeros delitos comprováveis e colocar o
PT no banco dos réus... Os filiados atingidos pela ação penal 470 não
podem transformar sua situação
numa síndrome partidária”. Xadrez para eles, portanto, para salvar o restante da Câmara dos Deputados e o PT, ou seja, a quadrilha toda.
A esquerda classista está metida no meio das mesquinhas especulações
eleitorais, nas quais é só marginal. Uma política eleitoral classista,
no entanto, só pode ser o resultado final (e secundário) de uma vigorosa
política de frente única de classe para organizar as lutas em curso, e
também as lutas potenciais (pelo salário, pelo emprego, pelo direito à
organização) suscitadas pela crise do capital. Só assim a crise política
dos “de cima” poderia ser aproveitada politicamente pelos “de baixo”. A
primeira condição é superar o sectarismo autorreferente e
autoproclamado com uma política de luta, de unidade e de independência
de classe.
Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.